O Mercado Municipal de Santarém

O sentimento é de solidão e desamparo, diante das árvores frias e da estrada que se estreita e se afunda no horizonte longínquo. Mas o poeta diz que o caminho se faz a caminhar. Então o homem, insignificante e heróico, lá vai caminhando lentamente, enfrentando o vento áspero e levando às costas a carga da vida. Distraído e cansado, caminhará até chegar ao fim.Esperando sempre ouvir uma canção improvável.

Justine, 17-11-08

... ah! o meu sonho de criança e que não me deixaram seguir. Quando me perguntavam "o que quer ser o menino quando fôr grande?" respondia sempre e pronto "pastorinho!"
Porque familiares chegados eram da zona de Fátima, as férias grandes eram aí passadas e do "milagre" bem presente nasceu-me a convicção infantil. Seriam as entrevistas, a carinha em tudo o que era rádio, televisão e jornais, as viagens a Roma e, quem sabe? a santidade absoluta. O estrelato, enfim.
Ao invés de cabras e mémés, o marranço em livros inúteis e o lugar anónimo num gabinete sem luz natural de uma instituição bancária, a analisar pedidos de empréstimos. Digam lá que a vida não é uma caixinha de surpresas?

legível, 02-11-08

Se no mercado as vacas continuam a exibir os seus elegantes cornos, já não se pode confiar no estranho gosto de quem as tem em posse. Mas para quê as ter quando no final nem uma marradinha se pode dar? Arre vaquinha que tens é de ir para o campo trabalhar!

Teresa Durães, 05-11-08

Justine, 09-11-08

-Ó Ti Jaquim, homem, mas o que 'tá a pedir é o dobro do que pede o Sr. Manel do Outeiro pela vaca dele! Nã pode ser...
-Pois é, compadre, mas é que a minha está prenhe! São dois em uma!

Justine, 12-11-08

Os barcos elegantes e a faina dura. A paisagem serena e as habitações miseráveis. Os homens humildes e escravizados. Como hoje.

Justine, 12-11-08

"... a todo o gás Satanás! que o diabo do chifrudo está com os azeites e quer cornear-te a garupa! Isso! galopa-me essas lezírias sem olhar para à rectaguarda com brilho e pundonor!!"
Era de raça o equídeo e bem obedecido ao campino Eduardo. Os dois eram um só corpo digno de se ver e já não era a primeira vez que, embasbacados, os pacóvios citadinos passavam a mão pelo pelo ao campino e metiam à sorrelfa, uma moeda de vinte e cinco tostões na pata de Satanás.
Sem darem conta -e com o toiro já a perder de vista desta desenfreada história, com Vila Franca de Xira à distância de um fósforo..., cavaleiro e cavalo acordaram em dividirem uma dose de enguias fritas numa tasca da rua da Estação.

Cuidado ó mulher que a história de andar sempre formosa e segura já perdeu a validade e se não segurares esse cesto vais mesmo chorar o leite derramado.

Ana Rosa a caminho do Coliseu dos Recreios de Lisboa, onde vai apresentar o seu aplaudido número "A Mulher Equilibrista". No interior da cesta que leva à cabeça, encontram-se duzentos euros, quantia que tem que gerir de modo a fazer face às despesas mensais da família que tem a seu cargo. O marido (que vem mais atrás) encarrega-se de satisfazer o pagamento da renda de casa e os consumos, é também um conceituado artista de circo, pois ainda lhe sobra algum dinheiro para ir ao futebol domingo sim, domingo não e pagar as aulas de informática para o porco aprender a teclar no portátil Magalhães.

Que seca! Não há meio de inventarem aquela coisa dos tractores...

Justine, 14-11-08

Ali há de tudo: maçãs, batatas legumes; pregões a torto e direito especulando os preços. Claro que o mulherio vai escolhendo e refilando - não fossem portugueses sempre insatisfeitos. Das farturas nem sinal: essas injectaram o mercado juntamente com as bifanas e os coratos. Os homens estão na praça a negociar as vacas, cavalos e vendas de terra. Entretanto os putos fugiram com peças de frutas roubadas aos incautos vendedores.

"Ouve rapaz, com essa perna partida o melhor é ires no cavalo, que o burro já está cansado para levar os dois, e eu, velho e
com estas dores nas cruzes, não posso ir a pé. E assim também calamos as más-línguas da aldeia...bem me lembro do falatório da última vez que fomos à vila"

"... mas de certeza que estas botinas são do número quarenta? é que eu nem consigo enfiar metade dos pés dentro delas... " queixava-se José Sabugo, empregado na estação dos CTT da simpática cidade escalabitana. Raimundo, habituado às exigências de uma clientela menos desfavorecida, não desarmou "Vocemecê leve essas que vai bem servido... mas não as calce ainda. Ponha-as à janela do seu quarto até os dias começarem a crescer. Verá que lá para meados de Junho já as poderá usar... mas não se esqueça de cortar as unhas dos pés".

Vieram de longe, provavelmente em ranchos. Hoje aqui, na azeitona, amanhã em qualquer outro local e em qualquer outra tarefa, que o que importa é ter trabalho.
O que é crucial é estar na praça, de olhos pregados no capataz, e ser chamado. Desse chamamento, quase divino de tão desumano, depende a sobrevivência. Dia a dia.

"...Ah Maria, se tu quiseras fazer teu,
este duro caminho meu,
se tu quiseras ser a candeia das minhas noites,
o bálsamo do meu cansaço,
a alegria desta vida,
na labuta aparelhada entre as bestas...
...levava-te ao mercado, Maria,
...caiava-te a casa, Maria,
...quem sabe menos dura fosse a estrada?..."

Havia qualquer coisa que não batia certo naquele lugar, ermo de gente, de vida. Passeou-se vezes sem conta sobre a foto, pondo em risco a cor azulada da imagem, com as botifarras sujas da lama invernal dos caminhos onde a lisura do chão alcatroado ainda não tinha chegado.
A sua cabeça não parava e só quando (aí pela quinquagésima ida-e-volta ao assunto) parou de facto à esquerda do painel de azulejos descobriu aquilo que o atormentava: a segunda fiada ao alto, dos ditos cujos, à esquerda, não "jogava a bota com a perdigota" na paisagem(?!) restante. Falta de inspiração do artista? Cansaço momentâneo? Não tendo resposta para o caso, saiu da foto, não sem antes passar um pano pela obra-prima, limpando-a de qualquer vestígio da sua passagem. A tia Eulália tinha-o convocado para um chá e se havia coisa que ela não gostava era da falta de pontualidade.

... e depois, para a festa terminar em beleza, um grupo de homens em fila indiana, com um deles mais destacado do grupo a chamar o toiro aos berros e este a não perceber patavina o que seria que o homem lhe queria. Tanto o citaram que se resolveu a ir ao encontro do grupo que mais parecia estar numa repartição de finanças à espera de vez para entregar o IRS. O primeiro tipo não foi de modas: saltou-lhe para a cornadura e procurou fazer o pino em cima da dita mas sem sucesso e foi por uma unha negra que não beijava na boca o espantado bovino que acabou por ser imobilizado pelo grupo. Depois de uns segundos, surprendentemente largaram o bicho mas não sem antes, ter ficado um deles agarrado ao seu rabo (do toiro, claro) e não vi mais nada que aquilo tudo me pareceu uma grande pouca vergonha...

Os bois, pacientes, esperam a ordem. Os homens, suados, sedentos e soturnos, continuam a encastelar a nuvem de palha e pó, desejando que o sol baixe depressa e o crepúsculo os encaminhe para o descanso.Para tudo recomeçar no dia seguinte.

... o manto de neve cobria de tal modo a paisagem ribatejana que Justino - guardador de gado caprino das nove às quinze e amolador de facas, canivetes e corta-unhas nas restantes horas do dia, cambaleou duas vezes sem cair e pensou em voz alta "Olha se eu tivesse bebido vinho tinto ao almoço?! agora estava a ver tudo vermelho!! Tenho de ter cuidado com a pinga; amanhã não almoço! só bebo...

Ah! Abençoado espaço e abertura que reservas! Sempre posso chamar as vacas e aumentar a imagem até só se ver as manchas brancas.

-Isto está mesmo mau, Ti Jaquim. Então o patrão o ano passado tinha duas varas com mais de mil porcos e este ano só nos dá estes a guardar?
-Nós é que estamos metidos numa camisa de onze varas, Manel. Por este andar, não tarda que a gente vá pró desemprego...
-Agora é que vamos ficar a saber bem o que é isso da crise!

"Estão a ver como a gente ficámos lindas na fotografia?! Não, o João da Ingrácia não conta que está de barrete e o nosso género não os enfia assim sem mais nem menos. Da próxima, pedimos para nos tirarem uma mas de corpo completo, não vão vocemecês pensarem que somos manetas das pernas. Hoje não pode ser que a jornada é dura e longa e a apanha da... (ai minha nossa senhora! que eu nem sei que fruta é esta!! que o homem da máquina de tirar retratos bem se podia ter chegado mais ao pé da gente... ) da fruta, prontos! e só finda quando o sol se está a pôr."